“Um caso de paixão pelo trabalho voluntário”, escreve o Jornal do Pinhal Novo, que dedica duas páginas da sua edição de 20 de janeiro ao médico que integra o Corpo de Bombeiros de Pinhal Novo. Leia aqui toda a entrevista, da autoria do jornalista José Manuel Rosendo.
Richard Glied está há pouco mais de seis meses em Portugal, e uma das primeiras coisas que fez depois de chegar foi bater à porta dos Bombeiros Voluntários de Pinhal Novo e dizer: aqui estou, disposto a servir. É ele o médico que “veste a farda” e acompanha os Bombeiros sempre que há uma situação que requer ajuda médica imediata. O caso de Richard Glied nem teria nada de transcendente, não fosse o caso de ser um cidadão alemão que escolheu Portugal para viver. Se pudesse, diz, trabalharia a 100% no INEM ou numa Unidade de Cuidados Intensivos.
Chegou a Portugal a 1 de julho de 2003. Um telefonema abriu a porta à concretização de uma vontade antiga: viver em Portugal! “O antigo diretor clínico do Hospital Particular de Setúbal conhece uma médica alemã que estudou comigo e que vive na Costa de Caparica. Através dela, soube da minha existência e fez-me o convite. Desde há 15 anos que fazíamos quase sempre quatro semanas de férias de Verão em Portugal. Conheço um bocadinho do país, especialmente o sul, de Lisboa para baixo. Criámos cá alguns amigos e já tinha ouvido dizer que faltam muitos médicos em Portugal. E porque gosto de viver em Portugal… gosto da comida, do tempo, das pessoas… e foi possível a minha especialidade (anestesiologista) ter equivalência em Portugal”.
Convite aceite, Richard fez as malas e chegou a Setúbal pronto para ficar. De início dormiu três semanas no próprio Hospital. Estudou o terreno e decidiu onde iria arranjar casa para que a família também pudesse vir: “Escolhi Pinhal Novo – que não conhecia – por uma questão estratégica, fica a meio caminho entre Lisboa e Setúbal. Em Setúbal tinha o trabalho e em Lisboa o Colégio Alemão para as crianças”.
Explicada a escolha de Portugal e de Pinhal Novo, como foi a aproximação aos Bombeiros? Chegou, bateu à porta e disse aqui estou, quero ser Bombeiro? “Fui médico num corpo de Bombeiros Voluntários na Alemanha (onde fui chefe de serviço num hospital público) e queria continuar esta atividade. Cheguei aos Bombeiros, mostraram-me o quartel, falei com o comandante e depois obtive a equivalência da minha formação como bombeiro alemão e já faço parte do quadro auxiliar especializado como equiparado a adjunto de comando. A 1 de agosto já tinha número mecanográfico dos Bombeiros”. Já tem farda e já participou em várias ações dos Bombeiros de Pinhal Novo.
Telefone ligado
O gosto pelo trabalho nos Bombeiros foi adquirido ainda em estudante. Estagiou em carros médicos nos Bombeiros na Alemanha e chegou a trabalhar integrado em tripulação de ambulâncias onde também ganhou algum dinheiro para ajudar a pagar a Universidade. Estava entranhado o gosto pela atividade.
Nos Bombeiros de Pinhal Novo, Richard está disponível (desde que não esteja fora a trabalhar) para ser chamado sempre que haja um serviço de saúde ou um acidente grave: “Telefonam-me e se estiver por perto vou ao local”. Foi o que aconteceu recentemente com o acidente que vitimou um idoso na Estação da CP em Pinhal Novo e também no acidente na Lisnave, em Setúbal, quando houve uma explosão num navio em que estavam operários a trabalhar.
Integração rápida
O facto de ser estrangeiro não significou qualquer entrave à integração de Richard nos bombeiros de Pinhal Novo. Em regra, todos os dias passa pelo quartel, de manhã ou à noite, dependendo dos turnos que vai fazendo no Hospital.
Chegado recentemente a Portugal, médico, e com a vida por organizar, seria de esperar que Richard se preocupasse em trabalhar de forma remunerada. “Os Bombeiros não têm dinheiro, as vítimas também não. Há muitos serviços de saúde que deviam ser acompanhados por um médico no local da ocorrência. Mas não há médicos… frequentemente o INEM de Setúbal está ocupado com outro serviço e há transportes de doentes com doenças súbitas graves ou acidentes graves que não são acompanhados por um médico que crie condições para o transporte do doente numa situação estável”, afirma este médico alemão, que prefere dar uma explicação “que não é para escrever” quando lhe perguntamos porque motivo não haverá em Pinhal Novo um médico português a ser voluntário como ele.
Serviço de urgência
Trabalhar nos Bombeiros, na área da emergência médica, exige uma filosofia específica: “Os Bombeiros são uma equipa unida. É necessário e de outra forma não seria possível trabalhar muito rápido e com muito rigor”. Relativamente às condições de trabalho nos Bombeiros de Pinhal Novo, Richard considera que “o quartel, em termos de trabalho humanitário, é muito moderno. Tem novas ambulâncias e possibilidade de trabalhar de forma mais diferenciada e não só para transportar doentes. Por exemplo, temos uma ambulância do tipo unidade de triagem. Custa dinheiro mas é uma ajuda importante para os sinistrados. Os Bombeiros estão bem organizados e têm uma forte capacidade mental para trabalhar modernamente e aceitar, por exemplo, as minhas indicações médicas. Quando se trata de estabilizar uma vítima ou um doente no local da ocorrência precisamos de explicar muitas coisas mas foi uma aceitação mais ou menos rápida”.
Ainda assim, entre Portugal e Alemanha há diferenças consideráveis: “Na Alemanha só os sapadores têm ambulâncias, os voluntários não fazem serviços de saúde. Quanto a meios técnicos para fogos e desencarceramentos a qualidade é a mesma mas existe uma grande diferença em termos de quantidade. Também há menos ambulâncias, menos carros médicos… na Alemanha é um luxo, um paraíso, existem muitos mais meios”.
Reconhece que os médicos portugueses têm uma formação e uma qualidade de nível europeu. Sabe que em Portugal a nota de acesso à faculdade de medicina é altíssima e conhece a realidade de jovens portugueses que têm de estudar noutro país para concretizarem o sonho.
“Acho que algumas pessoas que têm notas muito boas nem sempre têm vocação. Para ser um investigador científico é bom ter boas notas, mas depois para trabalhar são necessárias outras qualidades. Acho que o “numerus clausus”, tal como na Alemanha, não serve muito para escolher um bom médico”. É mais importante ter boas notas ou ter vocação? “Precisamos de encontrar um equilíbrio, a um nível alto, mas precisamos de ambas”.
Saúde à portuguesa
JPN – Está a trabalhar há pouco tempo em Portugal mas como é que avalia os cuidados de saúde prestados em Portugal?
RG – Como médico anestesiologista e intensivista conheço melhor estas áreas. Faltam muitos médicos nos cuidados intensivos (UCI), por isso é frequentemente difícil colocar feridos graves num hospital mais perto, porque frequentemente eles não têm um ventilador disponível. É frequente na Grande Lisboa não haver um ventilador vago para receber um ferido grave. Há hospitais com sete, oito ou nove camas com ventilador mas não é suficiente para todos os feridos/doentes em estado crítico”.
JPN – Mas isso é uma questão de meios e não de falta de médicos…
RG – Frequentemente os hospitais têm ventiladores mas o ventilador sozinho num quarto não serve. Faltam médicos e enfermeiros para manusear os aparelhos. Em termos de pessoal os problemas são mais graves do que em termos de material. Está mais difícil para os enfermeiros do que para os médicos. Os médicos podem escolher o local onde querem trabalhar.
JPN – O que pensa das listas de espera?
RG – Ao nível das urgências Portugal está ao nível da Alemanha, mas ao nível das cirurgias eletivas (cirurgias com data marcada) temos uma lista de espera que não faz muito sentido. Ouvi várias explicações… falta de médicos… falta de planeamento. Não tenho ainda muita informação sobre isso.
Muros da vergonha
Este médico alemão estudou durante oito anos em Berlim ocidental. Uma estadia com e sem Muro. Richard Glied nota as diferenças: “Foi muito interessante. Estive quatro anos em Berlim com a existência do muro e quatro anos depois de ser derrubado. Assisti à mudança. Berlim era uma ilha, depois voltou a ser a cidade importante que era no tempo entre as duas guerras mundiais”. Atento ao que se passa no mundo, olhando para o novo “muro da vergonha” que está a nascer na Palestina por obra de Ariel Sharon, primeiro ministro israelita, Richard não tem dúvidas da sua inutilidade: “É uma coisa artificial e são sempre as pessoas simples e pobres, as pessoas normais, que sofrem. É uma construção artificial dos políticos (decidida) de cima para baixo. Acho que não vai ser uma ajuda para chegar à paz. Em princípio, este tipo de coisas não resulta, a história demonstrou isso várias vezes”. Também irá cair como em Berlim? “Oxalá”!
Richard pinhalnovense
Richard Glied é casado, tem 3 filhos (rapazes) entre os 3 e os 6 anos de idade, nasceu em Bad Rothenfelde (concelho de Osnabrück), Baixa Saxónia. Formou-se como médico na Universidade Livre de Berlim.
Vive por agora num apartamento, mas tem outras expectativas, reconhecendo no entanto que para um cidadão estrangeiro é difícil ter acesso ao crédito. Já está recenseado.
“É uma cidade nova, com muitos habitantes, já ouvi dizer que recentemente tem crescido muito”, assim define Richard Glied a terra que escolheu. Por cá, vai ao cinema (na Biblioteca) pelo menos uma vez por mês, retomou a prática do Judo (na SFUA) e espreita os jogos do Pinhalnovense quando é arrastado pelos bombeiros. As pequenas compras são feitas perto de casa, as outras nas redondezas. O núcleo de amigos passa pelos Bombeiros, judocas da SFUA e também pelas famílias que têm filhos no Colégio Alemão e residem perto de Pinhal Novo. Já aprendeu a comer sardinhas em cima do pão, gosta do vinho da região e define o peixe como “mais fresco, há mais variedade e preparação (cozinhado) mais interessante. Na Alemanha não gosto de peixe…”.
José Manuel Rosendo, Jornal do Pinhal Novo


