Tinham-lhe dito para vir votar na Assembleia Geral da Associação dos Bombeiros Voluntários de Pinhal Novo. E explicaram-lhe que «não é para ele se ir embora; é só para dar um cargo a outro e ficar ele com o outro», conta Lucília Rosa Marques (na foto), 70 anos, a primeira sócia a chegar ao auditório da Associação na sexta-feira, 4 de março. Afinal, acabaria por não participar numa assembleia dolorosa, de nervos à flor da pele, onde quase tudo girou à volta da acumulação, ou confusão, de cargos. Conseguem as pessoas envergar, em simultâneo, vários tipos de fardas? Ou despir umas e enfiar outras, consoante as circunstâncias?
Ainda nem eram 20h30 (a hora para que estava convocada a Assembleia, sabendo-se que só começaria uma hora depois) e já Lucília Rosa Marques subia, com dificuldade, a escada de acesso ao 1º andar do quartel de Pinhal Novo (mais tarde, no plenário, viria a ser levantado o problema do acesso aos serviços administrativos – todos localizados no 1º andar – para os idosos e utentes com dificuldades físicas). Nos olhos, Lucília trazia a esperança de quem vem mudar o mundo. Residente na Lagoa da Palha, pagou «mil escudos» de táxi para cá chegar. «Depois têm de me ir levar», pediu, mal descansou as pernas numa cadeira. Era justo: se os bombeiros lhe tinham dito para vir votar, ela esperava que, pelo menos, a fossem levar a casa.
E foram. Mesmo antes da Assembleia ter início porque, afinal, Lucília era “apenas” familiar de um sócio (assim o provava o cartão que exibiu, orgulhosamente) e, por essa razão, não podia participar na eleição dos novos corpos gerentes para 2005. Feita a votação, bastante mais tarde, a única lista concorrente viria a ser eleita com 55 votos a favor e 23 contra (mais dois votos em branco): Fernando Pestana, Comandante do Corpo de Bombeiros, cedeu o cargo de Presidente da Direção a Victor Nascimento (vogal no executivo anterior, com obra feita na área dos investimentos em informática) e mantém-se no órgão como Vice-Presidente; a Direção fica renovada em quatro dos seus sete membros; os titulares dos restantes órgãos (Assembleia Geral e Conselho Fiscal) transitam do mandato anterior.
Lucília Rosa Marques já devia estar a dormir à hora da eleição. Analfabeta («Comecei a trabalhar com seis anos; o que é que a gente aprende? A minha mãe abandonou-me e a gente se queria comer tinha de trabalhar», contou), sabia, contudo, que para votar «a gente faz uma cruzinha e escolhe o partido que quer». A confusão da sócia-familiar, por assim dizer, foi apenas a primeira da noite.
Sob o signo das incompatibilidades
Um minuto de silêncio, cumprido em memória dos cinco bombeiros recentemente falecidos (Mortágua; Guimarães), foi presságio para uma noite emocionalmente dura. Antes da ordem do dia abriram-se as hostilidades com questões à Direção sobre o ponto de situação dos projetos e sobre as alegadas prioridades do Corpo de Bombeiros (a falta de capacetes, de um autotanque, de atendimento permanente na central, de reuniões com os bombeiros…), e quase que se tornava desnecessária a apresentação do relatório de atividades. O Relatório e Contas acabaria por ser aprovado por maioria (era o primeiro ponto da ordem de trabalhos), sem que, por uma única vez, se tivessem suscitado questões relativamente às contas propriamente ditas.
O drama da Assembleia não foi, de facto, esse, mas sim a acumulação de cargos entre o sócio que também é comandante e diretor, os sócios que também são bombeiros e os sócios que, além de bombeiros, também são funcionários (assalariados) da Associação. O problema chega a ser estatutário. Quando um sócio-bombeiro-funcionário pede para ser lido o artigo dos Estatutos da Associação (art. 12º, parágrafo único) que, aparentemente, proíbe os bombeiros de na Assembleia Geral discutirem assuntos respeitantes à disciplina do Corpo de Bombeiros, chega a questionar-se se o Presidente da Mesa devia ter acedido ao pedido; este considerou que não havia qualquer incompatibilidade entre dirigir os trabalhos da Assembleia e aceitar ler o artigo em causa.
Na verdade, não estava em questão qualquer procedimento disciplinar propriamente dito. E se, como alguém sugeriu em privado, o Presidente se estivesse a referir à sua relação laboral com o Assalariado (estando, naquele contexto, ambos despidos das fardas de membros do Corpo de Bombeiros), ao falar aos sócios sobre a gestão de pessoal levada a cabo no mandato? Assim já aquele artigo dos Estatutos não poderia ser invocado? Afinal de contas, o que deve prevalecer: a lei do Trabalho, a “lei” dos Estatutos ou a da Ética? A relação entre os homens (que o são, antes de serem sócios, bombeiros e tudo o mais), sobreviverá a estas feridas?
Impaciente, um sócio-poeta popular (também aqui parece não haver incompatibilidade entre os dois papéis), interrompe a sessão para lembrar que, naquela altura, ainda não se tinha entrado na ordem de trabalhos definida na convocatória e que aquelas questões poderiam ter sido resolvidas internamente («entre vocês»). Até nisto a assembleia foi estranha: faltou o momento de descompressão habitualmente proporcionado pelo poeta-que-já-foi-ferroviário e que, nas sessões públicas da terra, costuma pedir a palavra para recitar umas quadras.
A recuperação lenta mas necessária
Depois da Assembleia, madrugada dentro – despidas todas as fardas e reduzidos às suas condições de homens ou mulheres –, houve quem adivinhasse uma noite sem sono; houve quem acabasse entre lombinhos e imperiais a tentar perceber porquê?” e a sarar as feridas; houve quem trocasse mensagens sobre as máscaras que caem e as lições da vida.
No ar, fica a mais recente acumulação de cargos de legitimidade duvidosa: a da autora deste texto, que já foi repórter e pediu para sair da Direção para descansar um bocado (isto é, pediu tréguas), por manifesta falta de preparação militar. Será o olhar agora mais livre de quem está “de fora” compatível com o grau de comprometimento institucional inerente ao cargo de editora de um site oficial como este? Ou não será já esta a crónica de uma despedida anunciada, mas não desejada?
Quando, antes de abandonarem o auditório da Associação (antes da Assembleia ser dada por encerrada), alguns bombeiros (já esquecidos da sua “farda de sócios”) se voltam para a ala dos sócios-só (chamemos-lhes assim) e se sentem no dever de lhes dar uma explicação para o facto de terem votado contra a lista concorrente aos órgãos sociais, parecia que queriam dizer «nós queremos o Comandante só para nós…». Os sócios talvez tenham compreendido assim (Não querem lá ver que afinal gostam todos uns dos outros?, devem ter pensado, a caminho de casa). Mas a maioria foi com a consciência tranquila por ter achado que ainda não havia alternativa viável para uma tão imensa boa vontade.
Fonte: Crónica e Fotografia de Helena Rodrigues da Silva